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Vestir-se de “mulher” no carnaval: transgressão ou agressão?


Carnaval é bom pra pular, mas também é bom pra pensar. E a reflexão que faço esse ano, como feminista que sou, tem a ver com o tradicional costume dos homens de se vestir de “mulher” (como se o conceito pudesse ser tratado no singular) nessa época do ano. O que pensam esses homens? O que os motiva? De que “mulher” eles se vestem?

Alguns argumentarão que vestir-se de mulher no Carnaval tem a ver com a inversão generalizada típica da festa. Homens machistas e homofóbicos que normalmente repudiam o feminino por medo de serem considerado homossexuais, nessa época do ano, têm a permissão de se travestir. Mas o que é que se inverte no fim das contas? Os homens não passam a ser as maiores vítimas de assédios e abusos sexuais, nem de violência doméstica, nem têm suas questões invisibilizadas, como acontece diariamente com as mulheres. As mulheres, por sua vez, não ganham o direito de andar com (ou sem) qualquer roupa sem ser incomodadas, nem de tirar a camisa por causa do calor, nem de circular sozinhas de madrugada sem medo. Que inversão é essa? Travestir-se quando é permitido não configura transgressão alguma.

Longe de ser transgressor, vestir-se de mulher é (mais) uma forma que homens cis encontraram para ridicularizar as mulheres, reforçar estereótipos e perpetuar violências simbólicas. E não são vítimas dessa ridicularização apenas mulheres, como também transgêneros e homossexuais. Tudo se mistura em um terrível balaio do risível para o homem cis heterossexual.

Naturalmente, há formas de um homem se vestir de mulher sem reforçar o machismo nosso de cada dia, como forma de crítica à sociedade e apoio à luta feminista e anti-homofóbica. Tal forma passa necessariamente por não temer ou ridicularizar o feminino e o feminismo em todos os outros dias do ano. Este respeito pelas mulheres e pela luta feminista dificultará uma caricatura violenta no carnaval (o risco, no entanto, sempre existe, então fique sempre atento ao toque das amigas feministas!).

Tal postura respeitosa para com as mulheres no momento de travestir-se, porém, é coisa raríssima de se ver, especialmente em um carnaval que elegeu adesivinhos de piroca como a grande sensação. De falocêntrica basta nossa sociedade. Que tal, ao menos no carnaval, cultuarmos outros símbolos? Melhor do que pirocas na cara (que geram as mais variadas 'piadas' e 'cantadas' machistas) e do que travestir-se de "mulher", seria vestir-nos de feministas. Fica a sugestão para o próximo carnaval. E para o resto do ano também.

Neste 8 de março, leia também Parabéns no dias das mulheres?

Comentários

  1. E de qualquer forma a mulher continua sendo um ser inferior, mas precisamos continuar atentas e alertas para dar esse tipo de sugestão. Parabéns pelo texto, Nathalia!

    Zilda Assis
    www.porquegenteeassim.blogspot.com.br

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  2. Muito interessante o seu texto. É um assunto que já havia me causado inquietação, principalmente quando vi homens militantes vestidos com saia e usando batom na Marcha das Vadias. Entendo que nesse caso, a intenção não seja ridicularizar as mulheres. No entanto, continua sendo contraditório, porque ser mulher não pode ser reduzido a vestir saia e usar batom.
    É interessante que o assunto seja discutido para não cairmos em mais naturalização de esteriótipos, sujeição e violências contra a mulher. Parabéns pelo texto.

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  3. Nathalia, seu texto é muito bom e acho que a discussão é tão relevante quanto complexa. Naturalmente, enquanto homem, minha opinião será viesada e não tenho o mesmo direito de argumentar a favor ou contra vestir-se de mulher por não sofrer as agressões do cotidiano que você coloca tão bem. Admito que vesti de mulher nesse carnaval (e sempre adorei), mas ao mesmo tempo nunca consegui definir qual o caráter dessa atitude. Pelo menos acho que há uma coisa positiva em vestir de mulher, comentei isso com o pessoal ao longo do carnaval, andando na rua todo carro que passava buzinava e mexia comigo (o que foi muito irritante), então de certa forma pude sentir na pele (ainda que apenas 2 dias o que não é nada comparado a uma vida inteira no caso das mulheres) essa agressão que você descreve. Infelizmente, não sei se os homens que se vestem de mulher ficam incomodados com a azaração que recebem e percebem como isso é chato e que deveriam evitar isso no dia a dia, francamente acho que os homens não ligam muito para isso. Mas fica aberta a possibilidade que pelo menos alguns percebam o que é estar do outro lado. A mim, pelo menos, me irritou profundamente as "cantadas" e pude sentir um POUCO na pele o machismo ridículo de cada dia. Sempre simpatizei com a causa feminina, mas inevitavelmente como um "outsider", e, portanto, teve esse lado positivo de reforçar algo que sabia ser a atitude correta, mas que nunca havia sentido. Isso não é para dizer que pesando na balança todas as questões seja correto vestir-se de mulher, afinal, só mesmo as mulheres têm o direito de dizer o que acham dessa atitude, só quis levantar um lado positivo dessa atitude que, não obstante, não é suficiente para aprová-la.

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  4. Acho que rotular as coisas é tomar para si o discurso retórico da ponta da lança da marginalidade política brasileira.
    Sendo um estudo histórico e etimológico não vejo mal nisso?
    Mas tomar os valores já definidos como cruel e criminoso ?
    Sempre pensei que vestir de mulher fosse uma fantasia inrrustida em muitos homens e até acho graça.
    Na boa esse papo de feminismo estremo "ê um pé no saco" se é que o feminismo tenha um?

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