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O que queremos reduzir?

Esse é um guest post de mim mesma com 16 anos. Depois da triste aprovação da proposta de emenda constitucional para reduzir a maioridade penal pela Comissão de Constituição e Justiça, me lembrei desse texto que escrevi na adolescência para um jornal mural que eu e uns amigos inventamos. Considerando que o caminho para a efetiva aprovação da PEC ainda é longo, quis resgatar o texto para contribuir com o debate. Optei por não fazer alterações:


O que queremos reduzir?


Henry Thoreau, considerado pai do anarquismo, já nos atentou para o fato de que o Estado aprisiona o corpo dos transgressores por não conseguir parar seus pensamentos. Encher as penitenciárias de pessoas que são um incômodo para a sociedade, lembrando que a maioria dos presos é de classe baixa, nada mais é do que fechar os olhos para um grave problema. Encher as penitenciárias de incômodos em potencial, ou seja, reduzir a maioridade penal, é não só ignorar a crise que estamos vivendo como agravá-la. As péssimas condições das cadeias, somadas ao ócio improdutivo promovido por elas, jamais irão reintegrar alguém à sociedade, apenas deixam o ex-detento mais marginalizado do que era antes de cumprir a pena

Com essa pragmática e imediatista proposta de aprisionar mais cedo os adolescentes, estaremos super lotando as já super lotadas penitenciárias e, o que é pior, incentivando a continuação desse ciclo vicioso, que faz que com os presos saiam das cadeias mais preparados para cometer outros delitos. A educação de qualidade dentro das instituições de menores é uma das formas de evitar que os jovens, após estarem em liberdade, cometam novos crimes. É necessário ponderar que, em um ambiente no qual a vida do detento não tem o menor valor, ele aprenderá a desvalorizar também a vida das outras pessoas. Já em uma instituição onde o preso possa trabalhar ou estudar e tenha um tratamento digno, seus aprendizados serão totalmente diferentes. Não podemos achar que ficar confinado em uma prisão, tendo que abdicar de inúmeras coisas, mesmo que se trabalhe ou estude, não é punição suficiente. Ao desejar que um preso seja submetido a tratamentos e situações desumanas (como acontece muito freqüentemente), estamos automaticamente desejando que ele não se reintegre, portanto promovendo o que queremos combater. 

Além da redução da maioridade penal, surge outra discussão entre os brasileiros: a adoção da pena de morte. O contra argumento mais óbvio e incontestável é de que, com a instituição da pena de morte, muitos inocentes podem morrer. Em uma análise mais profunda, é possível perceber que esse é apenas um dos inúmeros problemas. Se o Estado condena o assassinato, ele não deveria cometer um. A justificativa de que tal ato se explica pelo bem que fará à sociedade é no mínimo estranha. Quem comete um crime uma vez não necessariamente cometerá outros. A atribuição do ato criminoso à natureza da pessoa que o comete é equivocada, a presença massiva da violência nas favelas evidencia que esse é um problema de ordem social e não de natureza humana. Ao matar um assassino para puni-lo, se está afirmando que uma pessoa tem mais direito à vida do que outra. O que define essa diferença de direitos? Considerando o país em que vivemos, inevitavelmente cairemos no critério da posição social, no qual a lei vale para os pobres e nunca para os ricos (que podem evitá-la com bons advogados ou com subornos). 

Para os que acham a pena de morte necessária, vale lembrar que o sistema capitalista se baseia na concentração de renda. Uma sociedade desigual como a nossa sempre produzirá mais marginais que, por não se sentirem cidadãos, continuarão cometendo crimes. Políticas de médio e longo prazo que promovam mudanças estruturais são mais sensatas do que matar cada novo criminoso.

Tais reflexões são muito importantes para definirmos que sociedade queremos, como vamos fazer para que ela alcance esse ideal e até que ponto somos contraditórios em nossos discursos. Está aberto o debate.

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