Pular para o conteúdo principal

Ser feminista e conviver bem com homens. É possível?

Antes de qualquer coisa, faço a ressalva de que estou escrevendo para mulheres (portanto, se você for homem, peço que nos dê uma licencinha).

Começo esse texto já fornecendo uma resposta muito pessoal para a pergunta do título: sim, é possível. Não pretendo dar aqui uma receita, pois cada uma vai achar sua forma de ser fiel ao seus princípios e continuar lidando bem com pessoas queridas que calharam de ser homens e que, às vezes, vão sim dar aquela escorregada machista. Mas vou compartilhar aqui o meu processo por imaginar que esse relato possa auxiliar as manas que estão passando por esse conflito (que é sim muito grande e sério).

Sou feminista há mais de uma década, desde quando ninguém usava essa palavra sem fazer uma cara de nojo. Foi muito, muito difícil ser a pessoa que saía da mesa e brigava com os amigos/parentes quando rolava aquela piadinha machista/racista na época em que quase ninguém problematizava isso. Há cerca de uns cinco anos essa situação começou a mudar e é por isso que eu vejo com muito otimismo processos que as pessoas têm visto com pessimismo. Vejo muitas meninas dizendo que tá foda, que os homens estão muito escrotos, que as violências estão por todo lugar, que as opressões não param. As coisas sempre foram assim. Só que agora milhares de mulheres colocaram o óculos do feminismo e conseguem enxergar as violências que antes naturalizavam e agora fazem com que os homens de seu convívio vejam as coisas por essa perspectiva também. Sim, dói. Sim, é difícil. Mas essa etapa é essencial para a criação de uma sociedade justa e igualitária. Temos que nos indignar sim, temos que denunciar sim, temos que discutir sim, temos que nos apoiar sim. Só não podemos transformar essa ferramenta tão linda quanto é o feminismo em algo que nos faça mal. Digo isso porque passei por uns dois anos de ativismo feminista muito intenso e de problematização profunda das minhas relações com homens (principalmente afetivas) e chegou um momento em que ficar brigando o tempo todo por milhões de machismos cotidianos me exauriu. Foi quando decidi canalizar meu feminismo para o fortalecimento de grupos de mulheres, para ações que alimentavam minha alma ao invés de destruí-la. E isso tornou tudo muito mais fácil.

Foi no processo de tentar trazer meu discurso feminista pra prática (ou seja, de realmente não depender afetivamente dos homens, de conseguir me amar e valorizar, de ter coragem de enfrentar as cantadas de rua, de ter coragem de interromper o sexo quando estava ruim, etc) que entendi um tanto de coisa que compartilho aqui. Entendi que atingir a coerência entre discurso e prática não tem nada de fácil, nadinha. Passei muito tempo em um relacionamento cheio de ansiedade e dependência, no qual eu não me dava valor, e foi justamente nessa época que meu discurso feminista era mais inflamado e mais público. Perceber toda essa incoerência me matava, mas eu não dava conta de mudar. Comecei então a procurar ajudas psicológicas e espirituais pra me auxiliar a fazer a transformação que eu tanto queria e, devagarzinho, com muito auto-conhecimento, fui conseguindo sair desse ciclo destrutivo. Hoje estou em um lugar muito melhor, hoje sim tenho auto estima e independência (e quando essas coisas começam a ir embora, já descobri minhas formas de recuperá-las com meditação, florais, etc). Passar por esse processo, no entanto, me deu uma grande dose de empatia com os processos, igualmente difíceis, de desconstrução dos homens à minha volta.

Nesse ponto, é preciso fazer a ressalva de que nem todos os homens estão buscando essa desconstrução e aí, quando eu percebo que o cara tá fazendo a opção de ser escroto apesar de toda a informação que ele já tem, eu simplesmente me afasto, porque eu não sou obrigada. E nem vocês são. Que esses homens fiquem sozinhos até resolverem escolher mudar de atitude. Mas quando eu percebo uma boa intenção de fato, uma vontade de desconstrução do machismo, aí eu tenho paciência e carinho: e como é bom! Tenho paciência e carinho porque concluí que não adianta dar indireta ou brigar apontando incoerências, porque se ele está tentando desconstruir o machismo dele, ele já está ciente dessas incoerências. E assim como eu, até hoje, não consigo ser 100% coerente (porque isso não existe) no meu feminismo, eles também não dão conta, e ficar só apontando o dedo na cara quando eles cometem um erro simplesmente não é produtivo (e lembremos que temos um objetivo claro a alcançar, nossa ações deveriam ser produtivas). Isso não significa que eu não dê aquela chamada quando um homem do meu convívio diz ou faz algo machista, mas eu falo com tranquilidade, com a naturalidade de quem sabe que a perfeição não existe (nem no outro, nem na gente).

Não me arrependo do momento em que eu metia o pé na porta, acho que tem hora que isso é necessário, principalmente em um momento inicial, porque não costuma acontecer das pessoas abrirem mão de privilégios voluntariamente (muitas vezes elas sequer os percebem). Mas é preciso saber o momento de mudar de estratégia. Depois que o homem já desceu do pedestal, aí dá pra conversar numa boa. Se a gente continua dando pancada, isso dói nele, dói na gente, e não produz melhora alguma. No fim das contas, realmente não tem receita, resta nosso bom senso e nossa intuição pra perceber quando uma pessoa está disposta a mudar ou não. E quando ela estiver, é preciso uma dose de carinho e paciência (o que não é a mesma coisa que indulgência e conivência), porque processos de transformação pessoal e cura (sim, para uma pessoa parar de subjulgar as outras, ela tem que enfrentar seus demônios internos e vencê-los) são penosos, trabalhosos e, principalmente, lentos.

Em resumo, esse foi o caminho que funcionou pra mim: começar a canalizar minha energia para o meu processo de cura e reconstrução e para o processo de cura e reconstrução de outras mulheres e parar de gastar energia brigando com homens que, de duas uma, ou não estão querendo mudar, ou já estão cientes dos problemas e não dão conta de mudar na rapidez que às vezes exigimos. Com certeza há outras estratégias de lidar com esse conflito e cada uma vai achar a que faz mais sentido pra si, mas quem estiver disposta a trilhar o mesmo caminho que eu, garanto que traz uma melhora enorme pra vida.

Por fim, termino com uma palavra de esperança: tudo que acontece hoje, já acontecia antes e simplesmente ninguém falava a respeito. Ver todo dia um novo escândalo ou polêmica feminista na internet, ver todas as minhas amigas se dizendo feministas e apoiando umas às outras e todos os meus amigos fazendo algum esforço de ser cada vez menos machistas me traz um alívio enorme. Agora não sou mais uma voz solitária, não sou mais a louca extremista, agora sou parte de uma coletividade que está buscando a cura, e a dor é apenas parte do processo. Não se trata de acabar com todas nossas relações com homens, mas de melhorar as relações que tiverem esse potencial. E isso acho totalmente possível. Se não acreditarmos que a mudança é possível, não faz sentido lutar por ela. E eu não pretendo parar de fazer nenhuma das duas coisas. Sem perder a ternura jamais.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sheik volta atrás, Nanda continua depilada

Depois da polêmica que Nanda Costa causou por posar nua “sem estar depilada”, estando, no entanto, indubitavelmente depilada, mais um banho de machismo, homofobia e conservadorismo: o jogador Emerson Sheik, após o corajoso (infelizmente esse adjetivo ainda faz sentido nesse contexto) selinho no amigo, se “desculpa” por ter “ofendido os corinthianos” e termina com uma piadinha homofóbica, pra que ninguém duvide de sua macheza. A declaração foi precisamente esta: "Lamento se ofendi a torcida do Corinthians, não foi a minha intenção. Foi só uma brincadeira com um amigo, até porque eu não sou são-paulino" ( leia a notícia aqui ). Esses dois casos me chamaram particularmente a atenção por conseguirem expor o nível completamente absurdo (para não dizer surreal) de machismo, homofobia e intolerância da nossa sociedade. No primeiro, temos uma mulher que, mesmo estando depilada, causa polêmica por não estar. Sintoma de uma sociedade que impõe tantos procedimentos estéticos sobre

Quantas feministas são necessárias pra trocar uma lâmpada? Ou sobre o riso dos outros.

Desde que me entendo por ser pensante, fui daquelas pessoas que discutem ou se retiram quando uma piada racista, sexista, homofóbica e etc. é contada. Sempre tive que ouvir, portanto, que não tenho “senso de humor”.   Eu, no entanto, adoro gente engraçada. Só tenho uma concepção bem diferente do que seja humor. E assistindo ao documentário "O Riso dos Outros" ( disponível aqui! ) vi que felizmente há vários humoristas que compartilham da mesma concepção e do filme tirei a inspiração para escrever esse texto.  Pra mim piada preconceituosa é humor fraco, fácil e, mais do que “politicamente incorreto”, politicamente ativo. Quando alguém faz piada pra rir de negro, de índio, de mulher, de gay, não está só contando uma piada, está endossando um discurso político. Isso porque, como explicou muito bem Alex Castro aqui , para uma piada ser engraçada, é fato, alguém tem que se foder, e a questão toda é: quem é que está se fodendo? Se é o negro, o índio, a mulher, o gay, então

O escudo sagrado do Galo e o espaço sagrado do futebol

Nos últimos dias, a Galo Queer criou muita polêmica, menos por fazer uma campanha contra o sexismo e a homofobia no futebol e mais por ter colorido parte do escudo do Atlético-mg com as cores da bandeira do movimento LGBT. Mas... será que essas duas coisas estão realmente separadas? Dentre várias manifestações de apoio, também muitas manifestações de repúdio surgiram, a maioria contendo os seguintes argumentos: “o escudo do Galo é sagrado”, “vocês podem fazer o movimento que quiserem, mas não mexam com as cores do Galo, tradição é tradição”, “É uma palhaçada misturar futebol com política, só pra chamar a atenção” e por aí vai. Várias pessoas sugeriram, para amenizar a situação, que se colocasse a bandeira LGBT atrás do escudo, ou as cores em volta do escudo, mas que se mantivesse o escudo original. É interessante, no entanto, ver o que está por trás desses discursos todos. O primeiro aspecto é que o ataque ao escudo colorido é uma forma menos explícita de se pronunciar contra