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Uma parte de nós se foi com o Museu Nacional, e agora?


Sou uma sonhadora incorrigível.
Essa noite, no entanto, habitaram meus sonhos imagens de fogo e destruição. Fiquei profundamente abalada com o incêndio do Museu Nacional, esse lugar tão especial por diversos motivos. 
Um lugar que continha um patrimônio histórico incalculável, tanto para o país quanto para a humanidade. Um lugar que além de cuidar do passado, era palco de uma atual e efervescente produção de conhecimento, uma vez que abrigava diversos programas de pós-graduação da UFRJ. 

Como Antropóloga que sou, ver queimar a casa de um dos mais renomados programas de pós-graduação em Antropologia do país, casa também de muitas pessoas queridas que passaram ali anos desenvolvendo seus mestrados e doutorados, me parte o coração. Me parte o coração também em um lugar muito pessoal, pois grande parte da minha relação com minha cidade do coração, o Rio de Janeiro, passa pelo Museu Nacional, de onde guardo bonitas memórias das atividades acadêmicas pontuais que vivenciei lá. Se está doído pra mim, posso só imaginar como está sendo difícil para as pessoas que trabalham, estudam e estudaram lá, a elas mando muita força e acolhimento, pois sei também que é uma parte delas que se vai. 
Aquilo não era um Museu, era todo um Universo. 

Ficam as especulações sobre ter sido ou não um incêndio criminoso, mas incontestável é que o acontecido foi no mínimo reflexo de anos de descaso político e corte de verbas. É como se fosse um grito de socorro do patrimônio público, da cultura e da educação que precisa ser ouvido.
As perdas materiais, históricas, documentais, arqueológicas, afetivas e simbólicas são incalculáveis. Agora o momento é de luto, revolta e tristeza e é importante e inevitável que sintamos esses sentimentos. Mas me preocupa também que paremos por aí. Sei que é fácil cairmos em uma resignação que nos diz que é isso mesmo, que está tudo sendo destruído nesse país, que nada de bom virá. 

Aí lembro de dois casos que me dão esperança: o primeiro é o da Horta Comunitária da General Glicério (RJ), um projeto lindo que foi desenvolvido em um terreno que estava há décadas abandonado após uma tragédia urbana - o desabamento de dois prédios - e hoje é um espaço incrível, vivo e comunitário. O outro é o Espaço Comum Luiz Estrela (BH), um espaço artístico-político-cultural-urbanístico feito a partir da ocupação de um casarão que outrora havia sido palco até de torturas quando abrigou um manicômio, e hoje é um espaço de diversidade, igualdade, alegria e arte aberto para todas as pessoas. Guardadas as devidas proporções, são casos que me lembram que, mesmo em cima de muita dor (que poderia e deveria ser evitada), é possível criar novas e bonitas histórias.

Fiquei aqui pensando se um local que já foi representativo de muita exploração e desigualdade no período colonial não poderia se tornar um símbolo da valorização da diversidade cultural do nosso país, se no lugar dos fósseis que infelizmente se foram, não poderíamos criar um ambiente vivo das culturas indígenas e afro-brasileiras que já foram tão mal-tratadas, se de alguma forma não poderíamos fazer dele um espaço de resistência e afirmação do capital humano valioso que, a despeito da nossa triste história, o país acabou por produzir. Que lutemos por uma reconstrução que efetivamente nos represente, que efetivamente honre o conhecimento que é produzido ali. Se é possível? Não sei, mas como acredito que palavras são sementes, foram essas que escolhi plantar aqui. Porque o fogo quando é incêndio é uma tragédia, mas pode ser também usado pro preparo de uma terra para o plantio. Algo vai ser cultivado nesse espaço, que seja algo que honre nossas raízes e ideais. 
Fácil? Provavelmente não. Mas fazer o que? Sou uma sonhadora incorrigível.


#omuseunacionalvive #umsonhoéumasemente

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