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50% de cotas. E agora?


Saiu a notícia e explodem discussões e questionamentos a respeito. E agora? Será que o mundo vai acabar? Será que começará o apartheid? Será que todos os brancos de classe média/alta vão se matricular nas escolas públicas? Não deveríamos adotar medidas apenas sócio-econômicas? Será que vai cair o nível das universidades? 
A resposta pra essas perguntas é bem simples: não.

Claro, nada é tão simples assim. Por isso faço aqui um esforço de explicar qual a idéia por trás dessa medida maluca e porque é que ela de maluca, na verdade, não tem nada. Antes de qualquer coisa é preciso entender exatamente qual é a redação da lei antes de sair gritando mil coisas a respeito, porque há muita desinformação rolando por aí. Em resumo: No mínimo 50% das vagas das universidades federais deverão ser destinadas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Dessas vagas, 50% deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário-mínimo e meio por pessoa (ou seja, no mínimo 25% do total de vagas). Todas essas vagas serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas (nada de "tribunal racial"), em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população do estado onde está a instituição, segundo o último censo. 

Como podemos ver, a lei combina os três critérios (renda, instituição escolar e cor/raça) no preenchimento de no mínimo 25% das vagas, e nos 25% restantes permanecem os dois últimos critérios. Sendo assim, não faria sentido que membros das classes médias e altas passassem a estudar em escolas públicas para tentar se beneficiar da política, uma vez que assim eles concorreriam a apenas 25% das vagas - e com muito mais pessoas - ao invés de concorrer aos 50% livres. (Sem contar que seria uma atitude muito da feia, né?  Tipo roubar o casaco de um mendigo no inverno porque está insatisfeito com os dez que tem em casa.) 


Uma vez compreendida a lei, passemos às próximas questões. O argumento de que as cotas irão baixar o nível das universidades e que os cotistas não conseguirão acompanhar as aulas é outro que não se sustenta. Os resultados iniciais do aproveitamento dos cotistas na Unicamp, UFBA, UnB e UERJ mostraram que o desempenho deles é similar ao dos alunos não-cotistas. Em 2005 e 2006, os cotistas obtiveram maior média de rendimento em 31 dos 55 cursos da Unicamp e, na UFBA, obtiveram coeficiente de rendimento igual ou superior aos de não-cotistas em 11 dos 16 cursos, por exemplo. Uma hipótese para explicar esses resultados é a de que os cotistas tendem a valorizar muito mais a vaga que ocupam na universidade do que os não-cotistas. Tais resultados se devem, também, a programas que auxiliam na permanência dos alunos cotistas na universidade, partes importantes da política de inclusão.
Além disso, já há uma década as universidades brasileiras adotam ações afirmativas e até agora não se viu nenhuma guerra racial acontecendo, muito pelo contrário. Apesar do preconceito inicial que os cotistas negros sofrem, eles relatam que a convivência com os outros estudantes tende a ser cada vez melhor à medida que os semestres passam. Taí mais um ponto positivo das cotas: a convivência direta e no mesmo nível entre brancos e negros (e não na relação patrão-empregado) - quem diria?! - desconstrói preconceitos ao invés de piorá-los!

Sobre "o absurdo de se incluir um critério racial em um país no qual a discriminação é apenas social", também tenho algumas coisinhas a dizer. No Brasil, quem é negro passa por dificuldades que quem é branco não passa, seja membro da classe baixa, seja da alta. Em uma entrevista de emprego, por exemplo, onde muitas vezes o critério de “boa aparência” é levado em conta, um negro, em relação a um branco, está em desvantagem. A pesquisa Retrato das Desigualdades (IPEA) também mostra que os negros recebem, em média, a metade do salário dos brancos. Esse e muitos outros dados produzidos pela pesquisa atestam o racismo que os movimentos negros há anos denunciam e mostram que a desigualdade social está longe de ser o nosso único problema. Além disso tudo, estudos já mostraram que apenas cotas sociais não são capazes de aumentar a proporção de alunos negros nas universidades, já que alunos negros que sofrem preconceito por parte de colegas e professores acabam abandonando a escola ou não tentando o vestibular por terem recebido a mensagem constante de que aquele não é o lugar deles. 

Por fim, para quem diz que as cotas são uma medida paliativa e de curto prazo, digo que são na verdade o contrário. A presença dos negros nas universidades e, posteriormente, nos escritórios de advocacia, nos consultórios médicos e nas empresas de engenharia (quantos advogados/médicos/engenheiros negros você conhece?) desconstrói estigmas relacionados aos negros e produz uma mudança significativa na organização da nossa sociedade. Dessa forma, tais políticas oferecem a possibilidade de rompimento da associação praticamente imediata entre negritude, pobreza e, muitas vezes, criminalidade, associação esta que é uma das principais raízes da discriminação racial existente hoje no Brasil. Além dessa profunda mudança, as cotas possibilitam que as próximas gerações tenham capital cultural suficiente para entrar nas universidades sem a necessidade de cotas (que são por princípio medidas provisórias). É importante acrscentar que essas cotas são reivindicações antigas dos movimentos negros e não tem nada a ver com medidas "compra-voto de baixo custo" (até porque tentar comprar voto com uma medida tão polêmica seria no mínimo arriscado).

Agora, se você está aí achando ruim fazer parte dos 20% da população que estuda em escola particular e que ocupa 85% das vagas das universidades públicas porque agora só vai poder concorrer a 50%, te digo que faltou uma parte importante na sua formação educacional de altíssimo nível: a formação humana. Ou, digamos, no mínimo, algumas aulas de matemática.

Comentários

  1. Cara Nathalia, sou, como você, a favor das cotas e curti seu texto, mas deve-se tomar cuidado ao interpretar a lei, como por exemplo o que você disse aqui:

    "Sendo assim, não faria sentido que membros das classes médias e altas passassem a estudar em escolas públicas para tentar se beneficiar da política, uma vez que assim eles concorreriam a apenas 25% das vagas - e com muito mais pessoas - ao invés de concorrer aos 50% livres."

    Isso é uma conclusão errada pois todos que estão dentro das cotas ainda concorrem aos outros 50% das vagas.. como por exemplo: se você é branco, tem uma renda maior que 1,5 salários mínimos per capta, estuda em escola pública; se sua cidade possui uma população 20% branca e você está concorrendo num curso de 200 vagas.. vamos as contas: 100 vagas só para cotistas, dessas 20 vagas pelas quais brancos podem concorrer, dessas 10 vagas pelas quais você pode concorrer devido a renda... mas você não irá concorrer somente a essas 10 vagas, será a essas 10+as outras 100 = 110...

    e sobre os membros da classe média passarem a estudar nos colégios públicos, isso seria excelente na melhora da educação, na minha opinião e na de muitos, mas não deve acontecer porque o aumento de vagas é ínfimo (no caso do exemplo foram 10 em 200 totais) e o ensino particular as vezes é mais vantagem que essas vagas.. o próprio Cristóvam Buarque, senador e ex-ministro da educação: “Não é nada contra o mérito da proposta, que acredito ser muito positiva. Mas tem aspectos que precisam ser mais debatidos. O limitador de renda, por exemplo, vai impedir que a classe média volte a colocar seus filhos na escola pública para que tenham melhores chances de entrar numa universidade. E seria ótimo que isso ocorresse, porque a escola seria pressionada a melhorar em qualidade”

    obrigado pelo ótimo texto!
    abraço!

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    1. Brigada pelo comentário, André!
      Não sei se entendi bem a sua argumentação, mas acho que talvez você não tenha entendido bem a lei. As vagas reservadas são dividas entre pretos, pardos e índios, os brancos não entram nas cotas. Os autodeclarados brancos necessariamente concorrerão aos outro 50%. Cada um vai concorrer às suas respectivas vagas.

      Agora, sinceramente, acho o limitador de renda positivo. Pra mim é muito mais importante que os negros e pobres tenham acesso à universidade do que que os membros das classes médias e altas voltem à escola pública, até porque é uma sem vergonhisse sem tamanho esperar que a escola básica só melhore porque agora os ilustres membros de classe média estão lá pra "pressionar" (não sei exatamente como é que funcionaria essa pressão.. eles podem pressionar estando fora dela também). A escola básica tem que melhorar, tem que melhorar urgentemente e tem que melhorar não porque tem classe média lá, mas porque quem é pobre tem o mesmo direito de ter educação de qualidade.
      E, por fim, acho que seria, como eu disse no texto, uma falta de vergonha na cara quem tem dinheiro tentar burlar a política e tentar se aproveitar de uma medida tão importante pra outras pessoas.

      De todo jeito, obrigada mais uma vez pelo comentário. Sempre bom poder debater um assunto tão delicado.
      Um abraço!

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    2. Nathalia, concordo com quase tudo, mas acho que você está subestimando a importância que representaria o retorno da classe média à escola pública no ensino básico e médio. Não acho que seria uma forma de "burlar o sistema", mas sim uma mudança cultural, um resgate da escola pública como um espaço plural, de todos, da sociedade. Hoje, a escola pública é vista como "a escola pra quem não tem dinheiro pra pagar a particular". O próprio professor da escola pública, muitas vezes, corre atrás de outros empregos para poder pagar a escola particular para os filhos. E o apartheid social já começa na infância, o que é muito ruim. Uma escola pública onde crianças de todas as classes sociais pudessem conviver e receber educação de qualidade representa a pedra fundamental para uma consciência democrática e plural dos cidadãos do futuro.

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    3. Claro que, com ou sem classe média, a escola pública precisa melhorar, e muito. Só que é inegável que a classe média tem mais voz na sociedade, mais consciência de seus direitos, mais contatos, mais meios de se mobilizar e exigir melhoras. Se a escola pública deixa de ser vista como um "favor" do governo, como um depósito de crianças pobres e sem futuro, e passa a ser vista como um caminho de acesso preferencial à universidade pública, a chance de resgate é muito maior. Sei que não deveria ser assim. Mas é.

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    4. Este comentário foi removido pelo autor.

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    5. Claro, você tem razão. O ideal seria que não existisse sequer ensino privado. Só que acho que nas condições atuais a entrada da classe média nas públicas seria só uma forma de não democratizar o ensino superior, ao invés de democratizar o básico. Mas também não sei o que iria acontecer, né? São sempre suposições.
      E gostaria mesmo de acreditar que a classe média é mais mobilizada, mas o que vejo é o contrário..
      De todo jeito, brigada por aumentar o nível da discussão por aqui! (:

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  2. Preconceito com pessoas que estudaram em escola particular?

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  3. Ridiculo isso... Vc foi estremamente preconceituosa com quem estuda em escolas particulares... Membros de classe media e alta. Quando menciona os mais "ricos" sempre fala com menosprezo. Quer dizer que por que tivr acesso a uma boa escola no ensino médio tenho que deixar as vagas das universidades publicas e migrar para uma particular por que quem teria "direito" seriam os menos favorecidos? E vc diz que seria falta de carater... Migrarmos no ensino medio para as publicas? Pq? Eu nao pago impostos para o governo para ter acesso a educação? Vc nao acha muito mais justo a meritocracia nao? Quem tirar melhores notas passam oras... É mt mais facil alisar a cabeça de quem n estuda.... Que é o que mais acontece nas escolas publicas. Querida, um aluno de escola publica se quiser passar ele passa, nós estamos recheados de exemplos no brasil que comprovam isso. Vc já leu sobre o Alcides, filho de uma catadora de lixo que foi um dos primeiros colocados em seu curso? Ele foi atras e consegiiu.. Mas não venham nos culpar por ter uma boa formação no ensino médio e nos privar dos outros 50%.

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    1. Os exemplos aos quais você se refere só se tornaram evidentes justamente pela dificuldade que as pessoas nessas condições tem de conquitar uma vaga em uma universidade pública. Se 20% da população ocupa 85% das vagas, não é por meritocracia que essa minoria a consegue, mas porque teve mais oportunidades. A lei vem para tentar compensar essa distorção já que, uma pessoa sem formação, tende perpetuar esse problema. De qualquer forma, você tem razão quando diz que paga os mesmos impostos que qualquer outro brasileiro ativo economicamente e tem o direito de utilizar a escola pública. Só não entendi porque você não o fez, assim competiria de igual para igual com quem estuda em escola pública também.

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  4. Muito bacana essa ideia de possibilidade de ascensão social e tal, mas as cotas também não são um mar de rosas. Se por um lado aumenta a diversidade socioeconômica das universidades federais, por outro retira a pressão que vem sendo feita para melhorar a educação de base. No final das contas o ensino fundamental público continuará precário.
    Só uma curiosidade: a maioria das sinapses do cérebro é feitas de zero a 12 anos. Depois disso, o que já foi moldado, seca e fica muito mais difícil de remodelar.

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