Nathalia Duarte e Joviano Mayer
Há uma frase feminista já bastante
difundida que diz que “feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente”.
“Que exagero!”, dirão alguns, “é claro que mulheres são gente, todo mundo sabe
disso”. Bom, aparentemente o Estado brasileiro ainda não tem esse entendimento. Para ele, somos nada mais nada
menos do que chocadeiras que parirão os homens (pilares da sociedade) e
mulheres (que no futuro irão parir
mais homens). A quem acha que essa afirmação é muito radical, respondemos que
radical é a violência à qual Adelir Carmen Lemos de Góes foi recentemente submetida,
assim como acontece com inúmeras mulheres diariamente no Brasil.
Arte: Bruna Barros rabiscodiario.tumblr.com |
O caso de Adelir, no entanto, explicita
de forma incontestável a violência obstetrícia (mais uma das 238.587 formas de
violência que atingem as mulheres) e evidencia, ainda, o papel ativo do Estado na colocação da mulher no lugar
de mera chocadeira a despeito da sua
condição de pessoa humana, sujeito de direitos.
Pra quem não acompanhou o caso,
explicamos: Adelir já tinha uma filha e um filho, ambos nascidos por cesária,
quando ficou grávida pela terceira vez. Como seu sonho era viver a experiência
de um parto normal, procurou uma doula (uma profissional que acompanha a gestação
da mulher e a auxilia também psicológica e emocionalmente antes e durante o
parto, buscando proporcionar o que nós chamamos de parto humanizado - leia mais
sobre isso aqui). Sentindo dores
abdominais, Adelir se dirigiu ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, no qual
uma médica disse que ela deveria se submeter a uma cesariana imediatamente.
Adelir se recusou e, assinando um termo de compromisso, voltou pra casa para
esperar o início de seu parto normal. A esse respeito, a doula Stephany Hendz
publicou o seguinte depoimento: “Gestante
sendo perseguida por se negar a realizar cesárea eletiva. Bebê se movimentando
bem, com frequência cardíaca tranquilizadora e mãe com pressão arterial 120x80.
Gestação de 41 semanas completas (pelo ultrasson) e posto de saúde ligando
(...). A sorte é que o empoderamento não se perde da noite para o dia. Orgulho
deste casal que pela terceira vez vai ter que brigar por um parto normal.”
O Hospital, a revelia da decisão de
Adelir e do parecer da doula, acionou o Ministério Público, sob o argumento de
que a integridade física do bebê estava em risco. O referido órgão, de natureza técnico-jurídica e não médica, sem nenhuma
competência para avaliar a situação clínica da paciente e sem sequer ouvi-la,
entrou com ação judicial e obteve decisão liminar favorável, concedida por uma juíza
que também não examinou ou sequer ouviu as razões de Adelir. Com mandado
judicial em mãos, médicos e policias armados retiraram Adelir a força de casa e
fizeram a cirurgia cesariana contra a
sua vontade. Segue seu depoimento sobre o momento: “Na hora que estava de cinco em cinco minutos as contrações, chegou a
polícia, chegou o oficial de justiça com viatura, com ambulância. (...) Eles
ficaram me aterrorizando dizendo que se eu não cumprisse o mandado meu marido,
naquela hora que eu estava precisando dele, iria ser preso”. A doula
sugeriu à equipe médica que encaminhasse Adelir para a cidade de Araranguá,
onde há uma equipe de parto humanizado e o parto normal poderia ser tentado, a
equipe, no entanto, se recusou. Para completar a sucessão de violências, o
companheiro de Adelir foi impedido pelo hospital de ver o nascimento da própria
filha - o que viola expressamente a
lei federal – durante o qual a médica xingou Adelir de louca, assassina
e irresponsável. (Clique aqui e aqui para ver as fontes)
Esse caso horripilante nos mostra o
total desrespeito ao qual as mulheres gestantes estão sujeitas e mostra como
a/o bebê é considerado muito mais importante do que a mãe, mesmo antes de
nascer. Essa é a mesma lógica que está por trás da criminalização do aborto, que leva à morte de muitas
mulheres que o fazem por meios inseguros. A justificativa da “integridade
física do feto”, no entanto, além de perversa, no caso de Adelir é falaciosa. É
óbvio que ela, seu companheiro e a doula que acompanhava a gestação estavam
preocupados com a saúde dx meninx. À Adelir, no entanto, não foi dada a opção
de parto normal da primeira vez que foi ao hospital, nem o direito de se
dirigir a um hospital com parto humanizado quando a equipe médica acompanhada
da polícia invadiu sua casa. Segundo a doula, a afirmação de que a cesária
deveria ser feita porque o feto estava sentado é improcedente. Essa posição de
fato dificulta o parto, tanto normal, quanto cesária (sendo este último um
pouco menos complicado), não o inviabiliza, no entanto. A cirurgia cesariana, na maior parte das
vezes, vem atender à necessidade e conveniência dos médicos, que preferem a comodidade de ter hora marcada pra
realizar o parto e também recebem mais
pela realização do procedimento cirúrgico. Em um caso como o de Adelir,
o que deve ser feito é escolha única e exclusivamente da mulher. Ou deveria
ser, se o Estado considerasse as mulheres como sujeitos de direitos e não meras
chocadeiras. Mas o hospital, o Ministério Público, o Judiciário e a Polícia têm
mais direito sobre o corpo e a vida de uma mulher do que ela mesma. E ainda há
quem nos desafie a provar que o Estado é patriarcal.
O Estado é sim patriarcal, masculino,
machista e uma das evidências disso é sua militarização. A mesma lógica militar
que obriga, com homens fardados e armados, mulheres a se submeterem a uma
cesária, arrasta Cláudias em viaturas de polícia. A mesma lógica militar que
faz com que homens arrastem Cláudias, constrange, desrespeita e humilha
mulheres que ousam denunciar violência doméstica e sexual nas delegacias. Um
Estado militarizado é um Estado patriarcal, e em um Estado patriarcal, mulheres
não são sujeitos, podem ser caladas, invizibilizadas, estupradas e agredidas. E
é por isso que a pauta da desmilitarização tem que ser essencialmente feminista
e que o feminismo deve lutar pela desmilitarização. Afinal de contas, o revólver
na mão do policial nada mais é que a reificação do falo com todos os atributos
de poder que ele oferece na nossa sociedade machista. E é por isso que vamos continuar
gritando, por mais absurdo que isso seja, que mulheres também são gente.
esse caso é horripilante.
ResponderExcluirótimo texto, nat.
tenho te lido sempre.
beijos
Nathalia e Joviano: obrigada em nome das mulheres que já sofretam bullying médico.
ResponderExcluirMyriam
O texto é ótimo, mas gostaria de fazer um "reparo". A doula não é parteira e essa é uma das discussões imensas, pois os médicos dizem isso (que doula quer saber mais que médico e "fazer" o parto). A doula é uma profissional que entende do processo fisiológico do parto normal e que auxilia física e emocionalmente a mulher no processo de pré-parto, parto e pós-parto, porém ela não é parteira!!! Algumas parteiras atuaram inicialmente como doulas e partiram para a formação técnica. Outras parteiras, eventualmente atuam como doulas para amigas e coisas assim, mas a "profissão" doula só se confunde com a profissão parteira por serem ambas profissões de respeito a mulher no processo...
ResponderExcluirObrigada, já corrigimos! :)
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